Sobre Um Outro Transumanismo: um esboço


Transumanista é o modo de pensar que defende a constante superação dos limites humanos, por meio da aplicação do conhecimento científico e dos dispositivos tecnológicos. Tem em vista o aperfeiçoamento corporal humano, a expansão das capacidades cognitivas, a aquisição de novas informações e experiências transformadoras da subjetividade. Embora tão voltado para a superação constante, o próprio transumanismo, enquanto filosofia, corre o risco de tornar-se defasado ao não dar conta de promover o aperfeiçoamento humano em um meio ambiente degradado, que não oferecerá condições para a vida em um futuro bem próximo.

Pesquisando sobre transumanismo, percebi que estava empenhando minhas atenções na compreensão de um tipo de raciocínio cientificista que havia se desenvolvido no chamado “primeiro mundo” (Europa e norte da América) e dali se disseminado.

A ideia de que todos os problemas podem ser solucionados pela aplicação dos métodos científicos é própria do positivismo comteano e, ao longo de todo o século XX fundamentou o desenvolvimento da economia capitalista e da produção industrial. Assim, a ciência, colocada a serviço da produtividade, trouxe o progresso material e garantiu melhores condições para a vida humana. Porém, também trouxe sérios problemas ambientais.

Nos últimos anos – marcados por pandemia e crises em praticamente todas as áreas –, ficou claro que a humanidade não alcançou o domínio da natureza como pretendia Comte. Ao contrário, mesmo em época de tecnologia digital avançada a natureza continua se mostrando mais complexa e arredia do que o ser humano foi capaz de prever.

Consequentemente, ganhou força a busca por alternativas aos modos de pensar e de viver estabelecidos, o que sugere um novo olhar científico e a construção de uma nova ciência. Na busca por novos paradigmas, as atenções acabaram se voltando para os alertas feitos por lideranças indígenas, e para os modos como os povos originários se relacionam com outros seres vivos e com o meio ambiente como um todo.

Não sujeitos ao mesmo processo histórico que envolveu os europeus, os indígenas não se entendem como superiores aos outros animais e nem como capazes de encontrar soluções para todos os problemas e, assim, manter-se a salvo da destruição a qual estariam sujeitas outras espécies. Percebem-se, sim, em uma relação de igualdade com os demais seres, no sentido de que todos tomam parte em uma rede de relações e interdependências e, ao mesmo tempo em que estão sujeitos às condições geofísicas do planeta, as influenciam.

É esse entendimento de si, por muito tempo tido pelos europeus como primitivo, que agora coloca os indígenas na vanguarda de uma nova filosofia. Vivendo mais próximos da natureza e atentos às consequências do modo como os seres se relacionam com o planeta, os indígenas estariam mais aptos a identificar as possibilidades de reverter os danos provocados pela produção industrial e desmedida ambição capitalista.

Assim, o Brasil tem muito a contribuir para as discussões sobre um outro transumanismo, que ultrapasse o cientificismo tradicional e contribua para a formação de um outro pensamento científico, que leve em conta, cada vez mais, aspectos de uma aproximação da espécie humana com outros seres vivos, fauna, flora, e demais constituintes do planeta Terra. Tal contribuição pode ser feita desde que não se ignore as particularidades territoriais do país, sua diversidade natural, demográfica e cultural.

Seria um erros continuar a discutir transumanismo unicamente à luz das pautas e abordagens europeias e norte-americanas. É preciso compreender as concepções de bem-viver das nações indígenas e, também, dos sertanejos, dos caboclos, dos ribeirinhos, dos quilombolas. Para isso é preciso apreender, tanto quanto possível, outras sensibilidades, outras percepções de mundo, outros modos de relacionar-se com a natureza e entre seres humanos diferenciados e complexos.

O olhar filosófico à luz das condições estabelecidas no Brasil pode vir a elevar as discussões internacionais a um novo patamar, pois, lembrando Esfandiary, a imersão em condições diferenciadas é indispensável para o desenvolvimento do humano. No atual estágio de desenvolvimento da espécie humana ainda estamos muito distante de esgotar todas as possibilidades de imersão no desconhecido, e consequente aquisição de novas experiências, aqui mesmo, no planeta Terra.

Conhecendo-se melhor e valorizando sua diversidade o pensamento de estudiosos brasileiros pode contribuir significativamente para a construção do futuro da Humanidade. Os estudos antropológicos são valiosos e por isso vêm ganhando cada vez mais atenção entre os pesquisadores internacionais os trabalhos de Eduardo Viveiros de Castro e de Davi Kopenawa, entre outros. 


Foto: Davi Kopenawa Yanomami, de VICTOR MORIYAMA / ISA.


REFERÊNCIAS 

Ailton Krenak. Ideias para Adiar o Fim do Mundo.

Ailton Krenak. A Vida não é Útil. 

David Kopenawa, Bruce Albert. A Queda do Céu: palavras de um xamã yanomani.

Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro. Há Mundos Por Vir? Ensaios Sobre os Medos e os Fins

Eduardo Viveiros de Castro. A Inconstância da Alma Selvagem.

Eduardo Viveiros de Castro. The Relative Native: essays on Indigenous conceptual worlds.