Stalker: o caso Kawara Welch


Inadequação de tratamento médico é ignorada em caso de possível 
comportamento obsessivo-compulsivo.

A artista plástica Kawara Welch, de Ituiutaba (MG), teria conhecido um médico psiquiatra em 2018, época em que procurava por tratamento para uma depressão. À certa altura, acreditando que ambos estavam em um relacionamento e encontrando divergência por parte do médico, ela teria passado a persegui-lo virtualmente e presencialmente e, também a seu filho e esposa... Com esta última, inclusive teria, entrando em confronto físico... Kawara teria chegado ao extremo de enviar ao médico 1,3 mil mensagens e feito 500 ligações telefônicas em um mesmo dia!

São muitas as questões que me chamam a atenção, além das particularidades do comportamento da suposta perseguidora. Digo "suposta" porque é ético usar a palavra ao se referir às partes de processo em aberto.

Em primeiro lugar, porque a grande mídia lança o rosto de Kawara às feras, em praça pública, enquanto o médico não é identificado? A resposta óbvia é que ela é a infratora, não ele. A prática de perseguir sistematicamente alguém que se sinta ameaçado é crime previsto em legislação, o denominado "stalker". Nada há o que argumentar contra o enquadramento da infração. Não se pode dizer o mesmo quanto à exposição imposta a Kawara. 

Vejamos, ela procurou por um psiquiatra para tratar uma doença mental. A obsessão que ela, ao que tudo indica, desenvolveu pelo médico, não é sintoma de doença mental? Em Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise é conhecido o conceito de "transferência". Trata-se de um processo pelo qual os sentimentos, sonhos, carência, impulsos, etc., do paciente são projetados, inconscientemente, em seu terapeuta. Em Psicanálise a "transferência" não só é esperada como é necessária à investigação das causas do transtorno mental e de seu tratamento. Ou seja, Kawara procurou por um psiquiatra, entrou em processo de transferência, é descabida a hipótese de que ela tenha desenvolvido uma obsessão? É o que pode acontecer, embora com intensidades variadas. 

O termo "obsessão" refere-se a ideias fixas, que ocorrem de modo involuntário e incontrolável, intrusivo, e que impulsionam comportamento compulsivo. Obsessões são desencadeadas por fatores inconscientes, os quais o profissional de saúde mental procura identificar para, a partir da identificação, traçar um plano de tratamento. É conhecido, por exemplo, o caso Homem dos Ratos, tratado e relatado por Freud e considerado como o primeiro relato médico de caso de transtorno obsessivo-compulsivo.

Pelo noticiado, não me parece que o tratamento dado pelo médico ao possível transtorno desenvolvido por Kawara, em processo de transferência, tenha sido adequado... Como ele mesmo admite, ele entrou em pânico diante do comportamento da paciente. Assim, perdeu o controle da situação!

Obcecados, em casos extremos, desenvolvem delírios, alucinações, que são tratados com medicação específica, além de psicoterapia. O que foi feito pelo médico como tentativa de cura dos delírios da paciente? Em um caso extremo como este, não seria o caso de contar com a ajuda da família da paciente e com o auxílio de outros médicos, que atuariam em conjunto?

Me parece que há uma inadequação das práticas, tanto quanto ao tratamento clínico quanto à ética médica... É ético expor um paciente desse modo, por inabilidade, culminando com sua prisão por atos cometidos contra o próprio médico? Mas, quem está sendo exposta é apenas a paciente! Tratada como criminosa, com comportamento aberrante! Se está colocando grande ênfase à infração cometida pela Kawara, e ignorando a falha médica.

Há no caso influência de interpretações preconceituosas? Uma "mulher histérica" descontrolada por causa de um "homem superior"? O que dá a um psiquiatra o direito de acreditar ser normal o comportamento de uma paciente que lhe envia 1,3 mil mensagens e faz 500 ligações telefônicas em um mesmo dia?

Enfim, no Brasil, como em várias partes do mundo, há índices alarmantes e crescentes de incidência de transtornos mentais, e é preciso procurar saber mais sobre suas teorias, tratamentos e políticas de saúde. 

Imagem: A Nave dos Loucos, de Bosch.