Primeiras Impressões: Theodore Dalrymple e a Abertura Cultural


Discutir as obras de Theodore Dalrymple, para além de dogmatismo, é uma boa oportunidade para promover uma real abertura cultural.

Dizem que a primeira impressão é a que fica. Nem sempre… Verdade seja dita: qualquer um pode escrever um livro. Desde que não seja analfabeto, e dependendo das intenções, claro! Os textos de Dalrymple (ou Anthony Daniel, seu verdadeiro nome) expressam suas preocupações e, também, sua busca por respostas... E nada mais! E não é pouco.

Frequentemente Dalrymple não apresenta resposta para as questões que aborda e, quando o faz, é superficial e preconceituoso de um modo nem sempre sensato. Em sua defesa ele ergue a bandeira da despretensão. Ele não almeja mesmo dar respostas definitivas para coisa alguma. De qualquer forma, ler seus livros é útil e um passatempo agradável até certo ponto.

Útil por esclarecer a lógica por trás de vários princípios defendidos pelos direitistas da política brasileira. Agradável porque sua prosa é clara, ritmada e envolvente. O “se não” fica por conta das defesas superficiais e preconceituosas de problemas sociais e, o que é pior, que acabam sendo replicadas por direitistas com sede de idolatria e "lacração".

A maior virtude do escritor Dalrymple é sua percepção de que nenhum ponto de vista é suficiente para, por si só, explicar um fenômeno. Percepção essa que ele desenvolve em seu Em Defesa do Preconceito - não por acaso seu melhor livro de muito longe -, em que defende que preconceitos são pontos de partida para a compreensão e que alguns devem ser mantidos enquanto outros devem ser superados, sendo o bom senso o juiz a ser levado em consideração. Ocasionalmente, entretanto, Dalrymple “se esquece” de tal sabedoria e se dedica à prática da polêmica, o que também tem seu encanto e utilidade à medida em que serve de estímulo à reflexão.

Infelizmente, Dalrymple, em Nossa Cultura e em Qualquer Coisa Serve, se atém ao superficial e permanece nadando na superfície. Assim, condena-se ao tipo de raciocínio que dá volta sobre si mesmo e arrasta os desavisados. Mas, não me parece que a má-fé se explique à sua postura (embora ele se mostre claramente vaidoso em certas passagens). Antes, uma genuína necessidade de expressar preocupações e inspirar reflexões sobre questões realmente importantes o impulsionam. Exemplo é o ensaio Sobre o Mal, publicado como capítulo de Qualquer Coisa Serve, sobre o genocídio de Ruanda e a frieza dos assassinos responsáveis por milhares de mortes, tema que o autor revisita com frequência, expressando seu espanto com o comportamento selvagem que ele insiste em entender pela ótica da moralidade como sendo "o mal". 

Não sei dizer se Dalrymple leu Nietzsche e sua A Genealogia da Moral. O filósofo apresenta uma investigação sobre a origem e o desenvolvimento da moralidade ocidental, não prescindindo de abordagem científica fundamentada em princípios da etimologia, da biologia, da física e da química. A concepção de mal, então emerge na filosofia entendida como uma interpretação historicamente construída do que Nietzsche chama de "a besta selvagem" e o conjunto de instintos originários, que seriam próprios do ser humano primitivo. Esse é um assunto complexo a ser tratado à parte, mas que não constitui uma novidade e a abordagem genealógica nietzschiana é uma explicação forte para as preocupações sobre  a origem e a dinâmica do mal. Como Dalrymple se declara um ateu, nele a abordagem naturalista não passa por bloqueios imposto pela religiosidade. Caso desconsidere as explicações de Nietzsche, o motivo não é a crença em Deus e em uma moralidade cristã.

Dalrymple escreve em primeira pessoa e é repetitivo. Percebe-se, facilmente, que antigos cadáveres continuam a assombrá-lo, insepultos. São vários os ensaios em que se apresenta como médico psiquiatra, filho de pai comunista e mãe alemã que refugiou-se da perseguição nazista na Inglaterra. Sua infância foi assombrada pela tragédia da Segunda Guerra Mundial, o que o transformou em um jovem angustiado, propenso a viajar pelo mundo de encontro ao "mal"... Esteve na América Central, na África e no Oriente, tentando não se perder em aflições enquanto vivenciava experiências impactantes, que o transformariam, para sempre, em um adulto preocupado com as origens, as ações e as consequências da "maldade".

O psiquiatra sob o pseudônimo Dalrymple apresenta reflexões e interpretações de casos com base em experiências vivenciadas por ele em suas viagens e ou no exercício da clínica em hospital da sua cidade natal, Birmingham, na Inglaterra. Ele tira conclusões que não podem ser tomadas como verdades absolutas. São interpretações válidas, sem dúvida. Porém, tomá-las como explicação universal seria tomar a parte (suas experiências) pelo todo (a totalidade do que se pode pensar sobre experiências semelhantes), um erro primário.

Dalrymple é um inglês que escreve como inglês, frequentemente referindo-se à realidade britânica, especialmente quando faz menção a benefícios próprios da assistência social, a ajuda do Estado aos pobres. Seu ponto mais equivocado, creio eu. De qualquer forma, qual a relação entre a realidade britânica e o contexto social brasileiro, com toda a sua diversidade e historicidade? A decadência moral é a mesma, diriam os direitistas. Tudo culpa dos intelectuais que optaram por abraçar a barbárie (os esquerdistas, não os direitistas, claro!) e da assistência social que sustenta os "vagabundos" penalizando os pobres empresários (trabalhadores superiores a todos os outros!) que devem pagar impostos (só eles pagam impostos!).

“Pouquíssimas são as coisas que não podem ser justificadas com um pouco de sofística”, diz Dalrymple (Qualquer Coisa Serve, p. 8). Que sinceridade comovente, não?!

Felizmente há aqueles que não se contentam com a sofística e escolhem dedicar-se a investigar qualitativamente os fenômenos, sem abrir mão de um número máximo de perspectivas possíveis. Então, é possível perceber que não é um bom método subestimar de antemão a inteligência dos menos favorecidos, pois eles são perfeitamente capazes de reconhecer as próprias necessidades e lutar por direitos. Os mais fragilizados não são "convencidos" por intelectuais de esquerda; eles se reconhecem nos discursos desses intelectuais. Assistência social é uma construção dos nossos antepassados que lutaram pela formulação de direitos legais em atenção às necessidades humanas. Sobre a maldade, são palavras de Dalrymple:

“… seria necessário um filósofo muito bom para chegar a uma solução nova – sobretudo uma solução que fosse convincente o bastante para satisfazer a todos, ou mesmo a muitas pessoas refletivas (…) Em que medida, então, a história, a socialização ou a psicologia são capazes de explicar o mal cometido pelos homens.” (QCS, p. 9)

Me causa estranheza que um médico pareça procurar explicações para o mal nas ciências humanas ou na metafísica... Seria desconhecimento? Se não é má-fé, só pode ser desconhecimento. A mim parece que os pensadores que melhor o explica são os naturalistas e, além de Nietzsche, alguns já bem antigos. Barão d'Holbach (1723-1789), em seu Sistema da Natureza, é bom exemplo.

“Tem-se abusado visivelmente da distinção que tantas vezes se faz entre o homem físico e o homem moral. O homem é um ser puramente físico. O homem moral nada mais é do que esse ser físico considerado sob um ponto de vista, ou seja, relativamente a algumas maneiras de agir decorrentes de sua organização particular. Porém, essa organização não é obra da natureza? Os movimentos ou maneiras de agir de que ela é suscetível não são físicos? Suas ações visíveis, assim como os movimentos invisíveis despertados em seu interior, que provêm de sua vontade ou de seu pensamento, são igualmente efeitos naturais, consequências necessárias de seu mecanismo próprio e dos impulsos que ele recebe dos seres pelos quais está rodeado. Tudo aquilo que o espírito humano sucessivamente inventou para modificar ou aperfeiçoar sua maneira de ser e para torná-la mais feliz nunca passou de uma consequência necessária da essência própria do homem e da dos seres que atuam sobre ele.” (d'Holbach, Sistema da Natureza, p. 11)

Há séculos a Filosofia deixou de ser campo de especulações metafísica e passou a trilhar o rumo da abordagem multidisciplinar. Filosofia não é campo de meras opiniões e nem de “convencimento”, como muitos parecem pensar, e sim de investigação e análise a partir de raciocínio rigoroso que não prescinde dos conhecimentos propiciados pelas ciências da natureza, insisto, e de refletir sobre a própria ciência e seus métodos. Como disse Schopenhauer, é preciso tirar os muitos véus que encobrem todas as coisas, um a um, e observar o que há por baixo.

Sou consciente de que este é um texto dúbio... Discordo de Dalrymple em vários pontos, enquanto reconheço algumas características louváveis. As discordâncias não são banais, algo para esquecer. Imagino que a Coleção Abertura Cultural, da editora É Realizações, sob a qual são publicadas as obras de Dalrymple no Brasil, não tem como promover real abertura sem provocar discussões que sacudam todos os dogmatismo... Trata-se de um autor que escreve ensaios, posteriormente publicados como capítulos de livros. No momento li algo próximo de uma centena de seus ensaios. Vários deles merecem atenção pontual, respostas reflexivas e colaborativas. Pretendo colaborar com a discussão, com textos nem tão generalista como este aqui, e farei na medida do possível. 



Referências

DALRYMPLE, Theodore. Qualquer Coisa Serve. São Paulo: É Realizações, 2017.

DALRYMPLE, Theodore. Nossa Cultura… Ou o Que Restou Dela. São Paulo: É Realizações, 2015.

DALRYMPLE, Theodore. Em Defesa do Preconceito. São Paulo: É Realizações, 2015.

HOLBACH, Paul-Henri Thiry, Barão d’. The Sistem of Nature. Bostom: J. P. Mendum, 1889, p. 11.

NIETZSCHE, F. W. A Genealogia da Moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.



[ editado em 29 de maio de 2022 ]