A Superação do Capitalismo Pelo Tratamento das Angústias

- León Rozitchner - 

O filósofo argentino León Rozitchner analisou a possibilidade de superação da opressão capitalista a partir das teorias marxistas e freudianas e defende que avanços só são possíveis por meio da minimização das angústias que adoecem os indivíduos.

A partir do século XVIII, o Estado republicano passou a ser impulsionado pelo interesse das massas por participar do poder de forma mais ativa. A busca pelos caminhos possíveis para atender a essa reivindicação, assim como seu fracasso, chama a atenção para a urgência de compreender a origem da relação entre a subjetividade individual (ou a interioridade dos indivíduos) e o espaço social.

León Rozitchner (1924-2011), atento à questão, assim a sintetizou: “o que significam as condições chamadas ‘subjetiva’ no desenvolvimento dos processos coletivos que tendem a uma transformação radical da realidade social?”. Buscando respostas para este problema, recorreu às teorias de Karl Marx (1818-1883) e Sigmund Freud (1856-1939), pensadores que vincularam o desenvolvimento das subjetividades humanas ao processo histórico de transformações culturais.

Rozitchner explica que Marx caracteriza o capitalismo como sistema no qual os interesses do capital e dos trabalhadores se contradizem. Em outras palavras, o tipo de organização para a produção capitalista distancia os indivíduos dos processos decisórios, assim transformando-os em peças de uma engrenagem que não os prioriza. Para tanto, o sistema submete os movimentos físicos dos trabalhadores, determinando ações repetitivas para realização do trabalho e condiciona seu pensamento a tais atividades, assim distanciando-os da racionalidade crítica e das condições necessárias ao desenvolvimento de um “eu” autônomo.

Freud, por sua vez, afirma que as forças (energias) que condicionam a vida humana e o funcionamento de seu aparato psíquico têm sua origem no interior dos próprios seres humanos e, ao difundir-se no espaço social capitalista, é redirecionada aos homens, dominando-os e promovendo o distanciamento entre sensibilidade e razão. É preciso entender o que isso significa e como acontece.

- Sigmund Freud -

Freud desenvolveu sua teoria da mente (psicanálise) inspirado por princípios da Física, mais especificamente pela energética e pela teoria da entropia. Entre seus conceitos mais importante  destacam-se: consciência (eu, ego, que nos dá a percepção de nós mesmos e do que ocorre no presente); pré-consciência (super-ego, super-eu, que envolve os conteúdos psíquicos acessíveis –  memória); inconsciente (id, que divide-se em instintos e pulsões); desejo (referente às faltas que as pulsões tentam preencher buscando por satisfatores); impulso de vida (eros, referente às forças que promovem a expansão da vida e da alegria de viver); impulso de morte (pulsão de morte, referente às forças promotoras de destruição, vingança, desconstrução); sentimento de culpa (resultante da desarmonia entre o desejo e as regras sociais historicamente construídas); medo da perda do amor (ou medo da punição por não corresponder aos padrões esperados por outros); complexo de Édipo (simbolizado pelo desejo pela mãe – entendida como fonte de energia vitais e promotora de expansão da vida – e assassinato do pai – que representa a autoridade, a norma, que bloqueia o livre curso de expansão das forças vitais).

Em O Mal-Estar na Cultura, Freud apresenta a noção de “sentimento oceânico”. Segundo ele, em seu desenvolvimento intrauterino, a criança se encontra envolvida pelo “sentimento de eternidade, como de algo sem limites, sem barreiras”. Trata-se de um “puro ato subjetivo”. Com o nascimento, a criança perde tal sentimento e passa a se adaptar ao mundo, captando percepções por meio de seus sentidos (olfato, audição, tato, etc.). Lentamente, ela passa a desenvolver suas capacidades mentais e faculdades cognitivas, e a absorver a cultura vigente no ambiente social em que se encontra inserida. Em tal processo, o cérebro realiza associações cognitivas entre aquilo que é captado do mundo que a envolve e suas reações interiores, orgânicas, emocionais. Desenvolve-se, assim, o universo emocional infantil, sua interioridade, sua subjetividade, as estruturas do seu aparelho psíquico.

Ao longo de seu desenvolvimento, os impulsos biológicos infantis entram em confronto com as normas sociais, as regras que regulam o comportamento humano e que são historicamente construídas. A criança é inevitavelmente levada a moldar seu comportamento ao que é socialmente esperado. Para Rozitchner, esta é uma "luta de morte", pois ela não se submete sem confrontar-se com aquele que se opõe à realização de seus desejos. Do confronto com a primeira autoridade máxima reconhecível – o pai que limita o acesso ao amor da mãe – resulta a "morte" do pai, ou seja, a criança nega o pai em sua mente (aquele que bloqueia a satisfação de seu impulso por expandir suas energias vitais – eros), nesse sentido ela o “mata” mentalmente, ao mesmo tempo em que cede à autoridade paterna e a internaliza em sua vida psíquica.

"Culpada" pela obliteração do pai (sentimento de culpa) e submetendo-se à autoridade, a criança limita a expansão de suas energias no mundo (molda-se ao comportamento esperado), quando adulta as limitações cobram seu preço... No entender de Freud, todos os desejos que o indivíduo não pôde realizar ao longo da vida permanecem recalcados em seu inconsciente, que guarda em si as forças estáticas que compõem a psique. Tomando como metáfora a imagem da corrente elétrica, Freud afirma que as energias pulsionais ao buscarem descarregar-se, alcançam a consciência e levam à ação. Quando uma energia pulsional possui um conteúdo que é bloqueado (recalcado) – censurado pelo senso moral incutido no indivíduo pela cultura que permeia o meio social –, permanece acumulada.  

Segundo Rozitchner, o sistema econômico capitalista (por meio da cultura socialmente e historicamente construída), tem a culpa original (o assassinato do pai) e o medo da perda do amor (da mãe), inconscientemente introjetados, como pontos privilegiados de sua manutenção. O sistema manipula as forças estáticas armazenadas no inconsciente dos indivíduos, apresentando oportunidades de liberação das energias estáticas recalcadas no inconsciente. Porém, sempre de modo que favoreça a ele, o sistema. 

Quando se diz que o sistema capitalista age no sentido de manipular as energias psíquica é preciso entender bem o que isso significa e como isso acontece... O capitalismo é indissociável da acumulação financeira e da industrialização, atividades que se tornaram possíveis e se desenvolveram ao nível da excelência a partir da aplicação da razão ao trabalho e a seus modos de produzir (Teoria da Administração Científica de Taylor, Teoria da Administração Clássica de Fayol, Teoria Administrativa das Relações Humanas de Elton Mayo, etc.). A razão, instrumentalizada, no capitalismo, é meticulosamente utilizada pelos gestores de empresas com fins a atingir objetivos que, tradicionalmente, na prática, favorecem o enriquecimento dos donos dos meios de produção e o repasse mínimo de rendimentos aos trabalhadores. É pela aplicação da razão instrumental que se dá a manipulação das energias psíquicas. Apenas anulando seus efeitos é possível superar o sistema e libertar a Humanidade.   

Assim, a problemática investigada por Rozitchner – o vínculo entre subjetividade dos indivíduos e espaço social – se explica pelo conflito estabelecido entre os impulsos naturais, orgânicos, que buscam a retomada da sensação de plenitude própria do “sentimento oceânico” intrauterino, em superação à castração promovida pela cultura que forma seres humanos com vistas à vida em sociedade, promovendo a manutenção das relações de poder, características do ordenamento hierárquico verificável entre dominadores e dominados, trabalhadores e donos dos meios de produção e geração de renda. Então, se entende as palavras de Rozitchner:

[…] é preciso sublinhar algo importante, o Édipo não é uma forma imposta em sua solução final. Trata-se de um desenlace espontâneo, e não de que o sistema social dominante o tenha organizado respondendo a uma necessidade de seu próprio império. O que o sistema faz é algo mais simples: utiliza em seu próprio proveito esta saída infantil em falso para apoiar sobre ela o poder de suas instituições. Esta primeira formulação de Freud nos abre uma nova dimensão social: até que ponto as instituições encontram sua afirmação e sua inserção na subjetividade iniciante da criança. E será essa matriz incipiente, mas cuja configuração servirá de base a toda estrutura despótica, aquela que no adulto reencontrará, coincidindo com o que lhe é mais próprio, império da família, a escola, o Estado, a religião. As formas objetivas de dominação encontrarão assim sua ratificação subjetiva, acordo “inexplicável” que constituirá seu baluarte aparentemente inexpugnável, assento do poder, como se a essência mesmo do homem solicitara, desde dentro de si mesmo, o exercício da dominação. (Rozitchner, 1989, p. 36-37)

O acúmulo de desejos bloqueados, reprimidos e recalcados no inconsciente acaba por gerar patologias e o "mal-estar" que Freud associou à cultura... Dessa forma, a busca pela supressão da opressão e compartilhamento de poder, no âmbito do Estado e de suas ações, passa pela minimização da angústia que gera o mal-estar e as patologias de ordem psíquica, pela promoção do reconhecimento das estruturas da mente, pela análise da história de vida dos sujeitos, pela compreensão dos campos de atuação da racionalidade e das disputar por poder em espaço social, pela liberação das energias estáticas recalcadas de modo mas saudável e benéfica às pessoas e à toda a sociedade de modo geral, e não a um sistema que as explora em nome de poucos favorecidos.


Para Saber Mais:

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Cultura. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2010.

GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. 24 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013, Livro I.

ROZITCHNER, León. Freud e o Problema do Poder. São Paulo: Escuta, 1989.