Amor Entre Espécies: as razões que a razão desconhece


O afeto entre animais humanos e não-humanos pode ter razões que a razão desconhece.

Carência afetiva não é apenas sobre receber atenção e carinho. Também é sobre a quem dedicá-los. Em um mundo onde se apanha tanto e, apesar disso, ainda se conserva algum amor próprio, coisas como cuidado, dedicação, lealdade, não são banalidades a se colocar à disposição de qualquer um em qualquer circunstância.

Erra-se ao pensar que carência sempre é sinal de disposição para mendigar amor. Nem sempre! E isso explica o motivo de tanta gente optar por se dedicar aos seus pets e não a seres humanos potencialmente tóxicos. Muitas vezes os animais se tornam mais dignos e a convivência com eles mais saudável... Verdade inconveniente essa, que não raramente se tenta negar, minimizando ou até tentando ridicularizar o vínculo entre pet e tutor(a).

Para além dos conflitos e desencontros humanos, há um tipo de amor que não pode ser vivido entre seres humanos. Estes sempre têm seu próprio caminho no mundo, que os leva a distanciar-se uns dos outros, às vezes mais outras vezes menos, mas sempre. Estamos entre partidas e chegadas todos os dias, pois é preciso assumir papéis em diferentes fases da vida. Uma criança deve ir à escola e realizar atividades próprias da infância; adolescentes e adultos passam a assumir compromissos, a dedicar-se a atingir metas, atender a objetivos, realizar projetos… Um cão ou gato, quando chega em um novo lar, escolherá a quem seguir preferencialmente em meio aos moradores de sua nova casa. E, seguirá realmente o seu escolhido, espontaneamente e com uma dedicação absoluta. Quanto mais tempo o(a) tutor(a) passar em ambientes compartilhados com seu pet, maior serão as oportunidades de interação, mais forte e mais sensível, refinado, será o vínculo entre eles. Quem trabalha em home office que o diga!

Comumente se diz que animais não falam. Outro engano! Eles desenvolvem linguagem própria. Um(a) tutor(a) atento(a) aprende a decifrar seus gestos, olhares, entonações de latidos e miados, comportamentos em diferentes ocasiões, cheiros, propensões… Tanto quanto eles, os pets, aprendem a reconhecer as palavras mais frequentemente usadas, os olhares dos seus humanos, gestos, cheiros, gostos, expressões faciais, etc… Me refiro a cãe e gatos, mas sei que há outros animais com capacidades cognitivas consideráveis… De qualquer forma, quando há uma linguagem estabelecida entre seres de espécies diferentes, há oportunidades de vínculos que podem transcender o comum e a lógica! Quando isso acontece, animal humano e não-humano se complementam e passam a desenvolver-se em interação. Eles desenvolvem um universo que os abriga contra o mundo hostil! E quem não quer abrigos seguros em meio ao caos e tempestades?

O que não se deve, nunca, é esquecer que espécies diferentes têm necessidades diferentes. Um gato, cachorro, vaca, porco têm histórias genéticas, e impulso, e instintos aos quais os seres humans, no alto de sua arrogância muitas vezes ignora. Aprendemos que somos o auge da criação divina, que nossa razão é superior, que ela dá conta de encontrar as melhores soluções para tudo. E assim, arrogantemente, agimos como se um animal fosse incapaz de exercer sua própria potência em seu próprio benefício e de outros, de tomar decisões acertadas em momentos críticos, de merecer confiança nos processos de tomada de decisão. É preciso aprender a "ouví-los", a dar importância para seus sinais, a confiar neles e a aprender com eles. Verdade que, para que o aprendizado seja possível, é preciso ultrapassar nossos próprios bloqueios. São palavras de Donna Haraway em Quando as Espécies se Encontram:

“Considerando-se os únicos atores, as pessoas reduzem os outros organismos ao estatuto vivido de mera matéria-prima ou ferramenta. (…) se não acessórios da moda, os animais de estimação são considerados mecanismos vivos para a produção de amor incondicional – escravos afetivos em suma. Um ser torna-se meio para os propósitos de outro, e o humano assume direitos sobre esse instrumento que o animal, pensado como coisa, nunca chega a possuir.” (p. 270)

O mito do “amor incondicional” é uma forma reduzida de entender um animal… Há aqueles que se comportam de acordo com essa ideia, sem questionamentos... Há aqueles que estão em processo de superação desse modo de pensar, tateando em um caminho longo, pois trata-se de demolir preconceito e limitações profundamente enraizados que dificultam ou impede a comunicação entre espécies. 

Não se pode perder de vista que a nossa razão nos engana, e isso não é nenhuma novidade. Engana quanto aos modos de compreender outros animais não-humanos e humanos, também.


Livro Indicado

HARAWAY, Donna. Quando as Espécies de Encontram. São Paulo: Ubu, 2022.

Foto: https://images.app.goo.gl/Sa1jt2Gt5UundkXS7