Wokes, Entre Privilégios e Novos Valores


Entre o autoengano e novos valores, os wokes se perderam nos caminhos da transição.

Nos primeiros anos do século XXI, o desenvolvimento das técnicas administrativas, em resposta à crise ambiental já detectada nos anos 70, tinha como objetivo a compreensão de novos conceitos e o desenvolvimento de ferramentas a eles relacionados. Estavam em foco concepções como responsabilidade socioambiental, sustentabilidade, reciclagem, qualidade de vida, diversidade e inclusão, fidelização de clientes, marketing de causas e de relacionamentos, gestão corporativa e transparência, atendimento ao cliente e fidelização, entre outras. Naqueles dias, nem tão distantes, se entendia que empresas e seus "colaboradores" deviam se responsabilizar pela construção de ambientes mais equilibrados e mais felizes. O “público-alvo”, assim como a sociedade em geral, não só esperava como estava atento para cobrar tais posturas daqueles que não agiam de acordo. Os universitários dos cursos de Administração, Comunicação e Marketing, então se mostravam entusiasmados e se instrumentalizavam para, em ambiente corporativo, corresponder ao que deles se esperava. Era uma época de otimismo!

Nos últimos anos, com o avanço da informática e das ideologias políticas de direita, é de se perguntar para onde foram os ideais pautados em responsabilidade, tão alardeados por universidades, empresas e jovens profissionais. Esmoreceram à medida que os movimentos de direita afloravam no horizonte?  Esta não é uma questão meramente retóricas e sim de cunho prático... Como se deu a transição do atendimento de qualidade ao cliente, focado em encantá-lo e fidelizá-lo, para o estabelecimento do atendimento frio, automatizado e ineficiente das inteligências artificiais (que ainda estão muito longe de demonstrar real inteligência)? A pandemia não é explicação suficiente para uma decadência tão acelerada e sem retorno na aplicação das técnicas e ferramentas "salvadoras"!

Naquele início de século, já como pesquisadora, eu notava contradições entre ideais e corporativismo. A exploração de recursos naturais, por exemplo, estava em contradição com os tempos e os limites da natureza. A qualidade de vida em ambientes de trabalho só se justificava pela garantia de maximização da lucratividade. O discurso de marketing de causas, obscurecendo o esclarecimento crítico, comprometia a qualidade de vida a longo prazo. A sustentabilidade, embora representasse um avanço, na realidade não tinha como se sustentar… Enfim, são inúmeras as contradições! A associação entre técnicas e sistema era por demais frágil e envolvia comportamentos humanos curiosos, ou questionáveis, por parte de colaboradores, para dizer o mínimo. Enganos e autoenganos, ilusões?

O fato é que, não raro, os fenômenos surgem antes das palavras que por consenso passam a lhes dar nome. Teria aqueles entusiasmados jovens profissionais do início do século se transformados nos personagens hoje conhecidos como “wokes”, a que o filósofo Luiz Felipe Pondé se refere tão sarcasticamente?

Eu, com meus botões, há décadas notava as características do que eu chamava de “burguês com culpa”, ou seja, do membro de classe média que sabe que o sistema que o beneficia tem problemas estruturais graves e, para encobertar a sua própria participação no desastre, procura cultivar uma boa imagem de si para si mesmo e para os outros.

O “burguês com culpa”, não consegue abrir mão de seus privilégios em nome de uma organização econômica e social diversa. Sua nobreza de espírito tem como limite a ameaça ao próprio status quo e crença no próprio direito a privilégios. Mas, seu narcisismo o impulsiona a cultivar uma imagem tão “certinha” quanto possível, politicamente correta, para que ele fique bem com a própria consciência e com os outros. Um exemplo? O alto executivo do sistema bancário que, com todas as consequências negativas de impulsionar o capital e a competitividade, se beneficia de sua atuação com altos salários, "prêmios" e "gratificações", enquanto ostenta a imagem da sua “família perfeita” de “comercial de margarina”. Ele não rompe com as estruturas, pois isso colocaria em risco seu próprio processo de conquistas de “riquezas” e de enaltecimento do próprio ego. No entanto, ele se esforça para se mostrar muito “zen” e do bem! Não raro se apresenta como adepto de tradições orientais ou “espiritualizado”, milita em ongs, pratica yoga, é vegetariano ou vegano e ou aquele que se alimenta de modo “corretou ou saudável”. Ele defende os animais, faz doações para instituições filantrópicas, se posiciona ao lado das causas politicamente corretas como a preservação ambiental, a inclusão das minorias, dos interesses das mulheres e dos negros, etc... Em outras palavras, ele acende uma vela para Deus e outra para o diabo!

Seja como for, “burguês com culpa” ou “woke”, se ele se enquadra no típico perfil é a personificação da hipocrisia, como bem disse o filósofo Pondé e eu concordo. Assim, desmascarado, colocado nu, quais alternativas restariam aos mentirosos hipócritas? Obviamente, despertar de verdade, ou sucumbir no autoengano de vez... O que o mantém no autoengano? O narcisismo, a vaidade e o medo, provavelmente. O que o impede de desperta realmente? O mesmo, no mínimo!

Importante que se diga que, se a princípio os wokes eram membros da classe média, no Brasil, a denominação passou a incluir, também, aqueles que tiveram acesso ao ensino superior a partir de programas sociais governamentais e aderiram a comportamentos semelhantes, quando não a um materialismo ainda mais agressivo e sem limites e comportamentos ainda mais mentirosos e hipócritas. O woke de classe baixa, não raro pretenso militante de esquerda, abre mão das exigências de  “benefícios para todos” em nome dos benefícios para si em primeiro lugar e para seu grupo a seguir, talvez... A noção de universalidade sucumbe diante do interesse próprio e ou segmentado.

Nos últimos anos, em meio à influência das redes sociais, fortaleceu-se a ilusão, entre os wokes originários das classes mais baixas, de que aquilo que é bom para as classes médias e altas é bom para eles e deve ser defendido. O argumento crucial válido contra essa crença, creio eu, é que um número crescente de indivíduos vivendo vidas materialmente abastadas, de ostentação e desperdícios, não seria suportado pelo planeta. A Terra não suportaria tal demanda por recursos e consequente produção de lixo e poluição.

Se assim é, o que nos resta ? Estabelecer uma nova base de valores, pautados em noções de suficiência. Que todos disponham do suficiente para viver dignamente! E por qual motivo isso não acontece? Não há esforços organizados nesse sentido, afora iniciativas isoladas, claro... O woke não se aventura a agir para destruir o sistema capitalista e substituí-lo por algo melhor! Pelo menos não ainda... Os “atentos” não estão despertos realmente, as elites não são elites o bastante. Faltam desapego, ousadia e nobreza! Seria preciso destruir o fetiche que os mantêm presos à matéria e isso só seria possível substituindo-o por uma paixão mais forte. E qual seria ela? Uma nova concepção de honra, uma revalorização de legados revolucionários, uma nova percepção do mundo que nos rodeia e consequente afetividade que permeie uma nova epistemologia? Uma nova aventuta do conhecimento e do autoconhecimento, certamente... Sem isso, a transição de antigos valores para novos valores permanece bloqueada. 

Ouso acreditar que tal bloqueio é parcial, que a vida continua lutando por perseverar na existência e realizar-se plenamente. Suas estratégias estão em execução, mesmo que imperceptivelmente nesses dias de crise. 



Indicação

TV Cultura. Wokes: o que são, o que comem, de onde vêm? Disponível na Internet em: https://www.youtube.com/watch?v=69mSbjqEr50

Imagem: Cena de Barbie, o filme.