Alexandra Kolontai e o "Amor-Camaradagem"

-  Alexandra Kolontai (1872 - 1952)  -
-  Alexandra Kolontai (1872 - 1952)  -

Contextualizando historicamente as lutas por emancipação da mulher moderna, Alexandra Kolontai localiza na Primeira Guerra Mundial o momento de profunda crise social que provocaria a transformação da subjetividade das mulheres operárias em sua busca cotidiana por garantir condições de vida junto ao mercado de trabalho. 

A história de vida de Alexandra Kolontai corresponde a de um tipo humano, presente em todos os tempos, que questiona a ordem estabelecida por notar que ela não corresponde ao que seria necessário para garantir o bem-estar do maior número possível de seres humanos. Em sua época – como em todas as outras – questionar, era visto como desafio ou ameaça por aqueles que, por conveniência própria, desejavam impor aos outros o que supunham fazer bem a si. Por questionar e propor o novo, foi exilada da sociedade russa de seu tempo e, ainda hoje, é mal compreendida ou propositalmente caluniada. Seus textos, no entanto, permanecem falando por si.

Nascida em 1872, na cidade russa de São Petersburgo, Alexandra Mikhaylovna Kollontai é descendente de nobres russos, seu pai foi um general ucraniano, sua mãe uma camponesa finlandesa. Contra a vontade da família, aos vinte anos casou-se com um jovem oficial do exército, de condições financeiras modestas. Autodidata, tornou-se uma pensadora à frente de seu tempo. Entendeu ser o processo de esclarecimento ético e a formação de consciências superiores condições indispensáveis à busca pela felicidade.

Sua vida e obra foram profundamente marcadas pelo contexto social de lutas e revoluções. No início do século XX, a Rússia era um império absolutista governado pelo czar Nicolau II e contava com dois importantes centros industriais – Petrogrado (então capital) e Moscovo. O operariado vivia em condições materiais difíceis e, nestas duas cidades, particularmente miseráveis. Em 1914, Kolontai aderiu ao Partido Bolchevique (socialista revolucionário) e, três anos mais tarde, tomou parte em seu Comitê Central.

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Com a eclosão da Primeira Grande Guerra (1914-1918), a Rússia entrou em confronto com a Alemanha, o que colocou em evidência o seu atraso com relação ao desenvolvimento industrial e político. Levado a um sofrimento atroz, tanto na frente militar quando em âmbito econômico, o povo reagiu, desencadeando a Revolução de 1917 e a substituição do czarismo por um governo provisório, sustentado por uma aliança firmada entre burgueses, democratas constitucionais e partidos ligados a movimentos operários. Eleita Comissária do Povo Para o Bem-Estar Social e, mais tarde, Comissária de Saúde, Kolontai tornou-se a única mulher a participar do governo de Lenin.

O ano de 1920 foi marcante em sua trajetória. Tornou-se Diretora do Departamento Feminino do Estado Soviético, ao mesmo tempo em que ingressou na Oposição Operária, segmento do partido bolchevista que se preocupava com a burocratização, a formação de hierarquias e a ênfase cada vez maior na produção. Tornou-se, por isso, mal vista por Lenin e, em 1922, foi afastada por Stalin, enviada para em um posto diplomático sem importância em Oslo, Noruega.

Nesta época, no entanto, Kolontai já era conhecida como uma escritora ativa e oradora de grande vigor. Suas obras apresentavam críticas à família e à moral sexual então vigente, que ela identificava à ideologia burguesa. Entre seus escritos, destacam-se: A Sociedade e a Maternidade, A Mulher Moderna e a Classe Trabalhadora, Comunismo e Família, Amor Vermelho, Romance e Revolução.

-  edição de 2005 da Expressão Popular, que fixa a grava do nome da autora que seguimos neste texto  -

A editora Expressão Popular, em 2005, publicou o volume A Nova Mulher e a Moral Sexual que, além do ensaio homônimo, escrito originalmente em 1918, também apresenta O Amor na Sociedade Comunista, de 1921. O primeiro traz uma crítica às questões afetivas e à situação da mulher na sociedade burguesa (mulher como propriedade, instrumento de prazer e de reprodução); o segundo trata da reorganização do comportamento de homens e de mulheres no contexto da então nascente sociedade comunista russa, os dilemas e obstáculos notados pela autora.

Em A Nova Mulher e a Moral Sexual, Kolontai chama a atenção para a “mulher celibatária”, que seria produto do sistema econômico capitalista, nascida em meio ao “ruído infernal das máquinas da usina e das sirenes das fábricas”. Ultrapassando as fronteiras russa, Kolontai recua até as sociedades feudais europeias, e encontra as origens da “mulher moderna” na crise social que acompanha o início da Revolução Industrial. A sociedade patriarcal e agrária, na qual a mulher é tida como propriedade masculina, começa a ruir diante de uma nova realidade tecnológica e produtiva.

Em meados do século XIX, em consequência da Revolução Industrial iniciada na Inglaterra, os países europeus passavam por profunda crise social. Os membros da nobreza, assim como os membros do clero católico, que formavam a elite dominante durante todo o sistema feudal, perdia poder. Surgia então, uma nova elite formada pelos burgueses, que dispondo de capital acumulado, tornaram-se donos dos meios de produção industrial e do lucro resultante do comércio dos produtos industrializados. Kolontai entende que a substituição do meio de produção feudal pela industrialização capitalista, a decadência da aristocracia e sua substituição na ordem social pela nova elite econômica burguesa, fizeram nascer novas condições de luta pela sobrevivência.

Enquanto os homens oriundos da antiga elite procuravam enfatizar sua força física e superioridade intelectual, as mulheres até então educadas nas virtudes da submissão e humildade, típicas da família feudal patriarcal, defrontavam-se com o problema de adaptar-se rapidamente às novas condições de sua existência. Kolontai, analisa a evolução da participação da mulher no mercado de trabalho e afirma:

Há 50 anos, as nações civilizadas não contavam nas fileiras da população ativa com mais do que algumas dezenas, ou mesmo algumas centenas de milhares de mulheres. Atualmente, o crescimento da população trabalhadora feminina é superior ao crescimento da população masculina. Os povos civilizados dispõem não de centenas de milhares, mas de milhões de braços femininos […]. Na Europa e nos Estados Unidos, as estatísticas acusam mais de sessenta milhões de mulheres inscritas nas classes trabalhadoras. (Kolontai, 2005, p. 17)

Decorre que é um erro grave considerar que o acesso ao mercado de trabalho foi liderado por uma vanguarda de mulheres desejosas de reverter a ordem social que as mantinha dependentes dos pais e dos maridos por mero orgulho de gênero... Kolontai mostra que as mulheres forçaram sua participação no mercado de trabalho impulsionadas pela urgência de suas necessidades, pelas condições miseráveis de vida que as ameaçava e a seus filhos. Lembremos que nos anos de guerra, enquanto os homens lutavam nas frentes de batalha, ou mesmo retornavam inválidos da luta, cabia à mulheres prover a manutenção de suas famílias.


Para ocupar postos de trabalho, as mulheres passaram a adotar características masculinas como firmeza, decisão e energia, mais condizentes com as exigências do mercado de trabalho. A autora ainda ressalta:

A força dos séculos é demasiado grande e pesa muito sobre a alma da mulher do novo tipo. Os sentimentos atávicos perturbam e debilitam as novas sensações. As velhas concepções de vida prendem ainda o espírito da mulher que busca sua libertação. O antigo e o novo se encontram em contínua hostilidade na alma da mulher. Logo, as heroínas contemporâneas têm de lutar contra um inimigo que apresenta duas frentes: o mundo exterior e suas próprias tendências, herdadas de suas mães e avós. (Kolontai, 2005, p. 25)

Lançada ao mercado de trabalho como único meio de prover as próprias necessidades, a mulher precisou superar sua própria fragilidade e adaptar-se às condições de competitividade por postos de trabalho. Frequentemente encontrava-se solitária e privada de afeto. Características femininas como passividade, submissão e doçura, precisaram ser substituídas por outras que garantissem condições de sobrevivência em um espaço social no qual as mulheres deveriam trabalhar no lugar dos homens. Assim, a substituição do sistema produtivo e consequente transformação das condições das mulheres provocou não apenas sua adesão ao trabalho nos moldes capitalistas como, também, a transformação das tendências psicológicas. A mulher, que surgia então, passava a desenvolver um novo aparato emocional e psicológico que a tornava mais apta a lutar pela sobrevivência.

Em O Amor na Sociedade Comunista, Kolontai conta que com a revolução russa estabelecida e a guerra encerrada, manifestou-se o descaso dos homens pelas necessidades das companheiras. Em tempos de conflito bélico as mulheres demonstram sua força sustentando a produção da qual dependiam as ações militares, porém finda a guerra, suas conquistas e direitos voltaram a ser negligenciados pelos homens e, não raro, sufocados pelos preconceitos das próprias mulheres, em cuja alma “o antigo e o novo se encontram em contínua hostilidade”. Ainda nos dias de hoje essa batalha interior das mulheres se faz bastante perceptível e ainda mais forte quando influenciada por ideologias de classe.

Em meio à contextualização histórica apresentada em A Nova Mulher e a Moral Sexual, Kolontai também chama a atenção para as diferentes condições que afetam a vidas das mulheres de origem aristocráticas de um lado, e das mulheres de origem humilde de outro lado. As primeiras, mais favorecidas materialmente pelas circunstâncias e pelas relações sociais, em situação de crise tendem a ter acesso a melhores colocações, substituindo seus pais, irmão e maridos em posições de comando, ou mantendo-se aliadas a eles ainda em uma visão patriarcal de mundo. Já às mulheres de famílias empobrecidas ou sem posses, restam os trabalhos mais penosos e a subserviência, a vida de esforços e sacrifícios distanciada de afetividade e da estabilidade emocional.

De modo geral, Kolontai conclui que: 1) a produção, é necessidade história, que influencia os modos de viver; 2) a afetividade é necessidade biológica, que afeta tanto homens quanto mulheres; 3) a ideologia estabelecida na sociedade é meio de controle de uns sobre outros; 4) a constituição biológica humana é resultante das relações pessoais que sofrem influencia do meio social.

Refletindo sobre tais conclusões, Tom Bottomore (2005, p. 208) argumenta que Kolontai é “frequentemente interpretada de maneira inexata”, como alguém que incentiva o  “amor livre”, ou o sexo livre, sendo que ela, em seus textos, defende o “amor-camaradagem”. Este, seria um novo modo de relacionar-se, “fundado no respeito à liberdade individual” e no “apoio mútuo”. Se a afetividade é necessidade biológica, que afeta tanto homens quanto mulheres, em meio às exigências de uma sociedade de novo tipo seria desejável que as necessidades femininas não fossem ignoradas em nome de uma moralidade que não condizia com a realidade daquele novo tempo.

Nota-se que Kolontai não faz a defesa da promiscuidade ou perversão, como muitas vezes se pensa, e sim de uma proposta que é “expressão de idealismo e de um espírito libertário” que contempla ambos os gêneros, em favor de uma afetividade não-egoísta, em que homens e mulheres não mais sejam tratados como objetos de uso, de posse, de dominação ou de exploração. Assim, o “amor-camaradagem” pode ser entendido como desdobramento do afeto mútuo, entre pessoas amigas, que se importam com as necessidades umas das outras.

Enquanto o confronto entre o antigo e o novo, no contexto da sociedade burguesa europeia, colocava a mulher operária diante das exigências de uma moralidade rígida embora, muitas vezes, incompatível com a realidade que a envolvia (inclusive muitas vezes vítima involuntária da luxúria dos homens), na sociedade russa, homens e mulheres, unidos pelo ideal revolucionário, no entender de Kolontai, deveriam buscar construir uma nova sociedade, permeada por novas relações.

Kolontai defendia que os objetivos estabelecidos pela ideologia socialista só poderiam ser atingidos pela cooperação estabelecida entre os sexos, inclusive, e principalmente, em questões afetivas. As formas de união conhecidas nas sociedades burguesas – matrimônio legal, união livre e prostituição – deveriam ser substituídos pelo amor-camaradagem, que uniria os indivíduos por meio de laços sentimentais e psíquicos de simpatia e amizade, fazendo surgir novas formas de amar e expressar afeto em superação à solidão típica do ambiente capitalista. A crítica aos afetos, feita por Kolontai ainda se constitui em potencial meio de análise e transformação das relações de gênero da atualidade.



Para Saber Mais

BOTTOMORE, Tom. Alexandra Kolontai. In: Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

KOLONTAI, Alexandra. A Nova Mulher e a Moral Sexual. São Paulo Expressão Popular, 2005.