Desafios Políticos
Quando a vontade popular aponta os caminhos a seguir,
convém enxegar oportunidades onde aparentemente só há problemas.
Para além de ideologias, interesses elitistas e partidarismos, de modo geral o povo brasileiro comprou o discurso do empreendedorismo. Isso explica, em boa parte, sua proximidade com o campo político de direita. Trabalhar no próprio negócio, com liberdade para adotar os próprios horários e regras, eliminar chefes e patrões e beneficiar-se dos próprios esforços é uma ideia atraente!
Não cabe aqui, no atual momento, a poucos dias do segundo turno das eleições, tentar argumentar contra, com pretensões a esclarecer sobre as ilusões inerentes ao conceito de “empreendedor”. O povo não está interessado, não quer ouvir... E não se pode esquecer que o grande incentivador dos microempreendedores individuais foi e é o governo Lula.
O que se pode fazer no atual contexto? Aceitar o desejo popular e procurar minimizar danos, creio eu… Mas, não só! Encarar problema como oportunidade é desejável, pois a disposição para arriscar-se empreendendo pode sinalizar, também, o direcionamento de energias vitais para sair da posição subalternar e desafiar a ordem das coisas, ou o sistema capitalista... Se assim é, o papel que cabe à esquerda é ajudar a tirar as pedras do caminho. Será a esquerda capaz disso?
“Quando a educação não é libertadora, o desejo do oprimido é ser o opressor”.
Como mudar essa lógica?
Rosa Luxemburgo, uma das mais importantes teóricas marxistas, compreendeu que é nas práticas do dia a dia que o povo desenvolve consciência crítica e encontra soluções para seus problemas. Não se poder querer estancar o movimento das massas. Pará-lo significa impedir de avançar eticamente em processo de acertos e erros e correções. E não cabe às lideranças dizer o que o povo deve fazer. Só ao amadurecer eticamente o povo pode se tornar senhor do seu próprio destino.
Pablo Marçal saiu-se com a ideia de criar centros empresariais nos bairros, com vistas a fortalecer iniciativas empreendedoras e impulsionar economias locais provedoras de geração sustentável de renda. Ideia magnífica! Mas, velha... Há duas décadas surgiram os pontos de cultura, criados no primeiro governo Lula. Eram resultado de políticas públicas que direcionavam recursos para compra de equipamentos. Viabilizaram o funcionamento de associações culturais em bairros periféricos, inclusive com computadores e multimídia, que tinham como objetivo promover a inclusão social, quando a Internet se encontrava acessível a poucos… Não vamos esquecer que Lula e Dilma também foram grandes incentivadores da aquisição de computadores, por meio de programas de financiamentos e expansão da Internet em território nacional.
Estava ali postos, na virada do século, os recursos e condições para o que poderia ter sido o começo de uma revolução social sem precedentes! Porém, foram terrivelmente mal aproveitados. A esquerda não percebeu o potencial da rede mundial de computadores e chegou a evitar o uso dela como meio de se expressar e influenciar politicamente. O resultado foi a Internet ter se tornado reduto direitista que favoreceu a eleição de Bolsonaro.
O que difere a proposta de Marçal dos antigos pontos de cultura é primeiramente a linguagem, além do foco e das ênfases. O projeto inicial visava a inclusão social, mas inibia a aplicação de grande parte das ferramentas e dos conhecimentos úteis por identificá-los como “capitalistas”... Marçal não tem restrições ao capitalismo, pelo contrário! Porém, tenho dúvidas se ele realmente domina o uso das técnicas seja para o que for. E pior: ele é agente do caos e se mostra muito mal acompanhado.
Nos últimos 20 anos as ciências humanas entenderam que as técnicas usas no sistema capitalista não são neutras e que é preciso esvaziá-las de seus direcionamentos iniciais. É necessário eliminar delas as propensões que favorecem a manipulação, o controle do pensamento, a escravização das subjetividades, a competitividade e a acumulação financeira desenfreadas, de modo a substituir o que há de nocivo por critérios éticos favoráveis à cooperação, à suficiência contra os exageros, aos cuidados de si e do outro.
O que se viu nos últimos anos é que essa extrema direita que aí está é inimiga das ciências e se revela trabalhona e incompetente quando é necessário fazer uso de conhecimentos sistemáticos. Um completo desastre! Ou seja, o microempreendedorismo liderado pela direita seria, muito provavelmente, um salve-se quem puder destrutivo!
Assim, novamente, o campo político de esquerda ganha uma chance de reciclar-se, atraindo para si o povo que busca por soluções para as dificuldades cotidianas e não sabe onde encontrá-las. A esquerda organizada e disposta a evoluir pode oferecer segurança para transformações pautadas em métodos e em um ambiente social mais propício… Porém, enquanto continuar apostando que o povo é apenas “burro”, alienado, manipulado, ressentido, continuará a afastá-lo. Nada foi mais acertado nos últimos anos do que Mano Brown dizendo “a esquerda precisa voltar para as bases”! Não é a direita que está destruindo a esquerda e sim a arrogância e falta de visão da própria esquerda.
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