Qualquer Coisa Não Serve


No geral, entre pessoas de bom senso, categorizar alguém como "falacioso" é ofensivo. Ofensas não constituem bons caminhos quando se deseja estabelecer diálogos construtivos. Apenas por esse motivo opto por não usar o termo associado a Theodore Dalrymple. E como ninguém sabe tudo, nem eu, considero suas palavras como oportunidade de esclarecimento.

Em Qualquer Coisa Serve, o capítulo 17, Como Odiar o Que Não Existe, Dalrymple se diz "um esteta" – o que vem de encontro ao que eu mesma já concluía de seus textos: trata-se de alguém cujos princípios morais provêm do gosto preferencial por formas específicas – e retoma um de seus temas preferidos, a questão do bem e do mal. Desta feita, relembra um cirurgião com quem trabalhou na África. Profissional brilhante, de grande capacidade técnica, "temperamento perfeito", elevado caráter, profundamente respeitado por seus colegas e por seus pacientes. Um exemplo a ser seguido! 

"Embora altamente respeitado no hospital, ele não logrou reputação maior por conta de seu trabalho: o que lhe satisfazia era praticar o bem. Nunca conheci homem melhor", diz Dalrymple, "eu estava certo de que jamais seria um homem  tão bom quanto aquele. Meu problema era o ego: eu queria provocar uma leve comoção no mundo, e para isso, fazer o bem aos outros não era o bastante..." (p. 153)

O que Dalrymple diz a essa altura é que sua porção esteta se manifesta por meio de sua "ambição literária", em detrimento da parte de si mesmo dedicada à medicina. Embora aquele cirurgião fosse admirável, seu exemplo não foi suficiente para influenciar Dalrymple a optar por perseverar na medicina. Ele escolheu dar vazão ao seu ego, tornando-se escritor, por que desejava vaidosamente "provocar uma leve comoção no mundo", o que acabou por lhe valer maior destaque profissional do que o alcançado por aquele cirurgião admirável. Assim, Dalrymple diz que não conseguiu ser tão benevolente quanto o homem que foi um dos melhores profissionais e seres humanos que conheceu. Ele fala de si e continua:

"Curiosamente, sob esse aspecto tenho algo em comum com alguém que, em geral, não me é nada agradável: Michel Foucault. O pai do jovem Michel foi um cirurgião de renome local que lhe forneceu um exemplo de compaixão prática (a saber, ele acordava no meio da noite para salvar vidas) a que Foucault se sabia incapaz de corresponder, uma vez que não se importava tanto com a vida dos outros a ponto de fazê-lo. Para equipara-se ou superar seu pai, como egoísta, restava-lhe um único recurso: adotar a posição nietzschiana segundo a qual uma compaixão como aquela de seu pai não passa, no fundo, de fraqueza, desprezo ou desejo de poder disfarçados." (p. 153)

Assim, do nada, Dalrymple tira da cartola o nome de Michel Foucault, de seu pai (Paul Foucault) e de Nietzsche... 

O que nos contam os biógrafos é que Foucault teve uma relação problemática com o pai; que ele teve sérios problemas por conta de sua homossexualidade, inclusive chegando a tentar suicídio. O pai chegou a interná-lo em uma clínica psiquiátrica, tirando-o como louco, por conta de esgotamento nervoso. Evento este que acabou por direcionar a atenção de Foucault, o filho, para as doenças mentais e, posteriormente, para a Filosofia... Reduzir tanto sofrimento a "não se importar tanto com a vida dos outros" ou simplesmente ser um "egoísta"  sem "compaixão" que não quis ser médico para não ter que "acordar no meio da noite para salvar vidas", preferindo dar vazão à sua vaidade e desejo de sobressair-se não tem como não soar como leviano, difamatório e de má-fé... Mencionar autores sérios, com vasta e complexa obra, dessa maneira, é algo que não se deve fazer nunca, pois é o melhor meio de se disseminar a ignorância. 

Sim, Foucault, o filho, se declarou muitas vezes como "nietzschiano". Porém, de maneira alguma ele entendeu a filosofia de Nietzsche como Dalrymple a reduz em suas poucas linhas. Pelo contrário, Foucault se dedicou a mostrar como o pensamento de Nietzsche é útil para aqueles que desejam desenvolver pesquisa séria e ou alcançar um desenvolvimento humano real, como raramente as elites conseguem... Nietzsche não se limitou a meramente decretar que tudo deve ser pensado ao contrário, como sugere Dalrymple!

Contra Nietzsche, Dalrymple afirma que o filósofo inverte os sentidos de todas as coisa, considerando como regressão aquilo que seria progresso – "tudo é o oposto do que parece ser e o suposto progresso consiste, na verdade, em regresso ou, na melhor das hipótese, num movimento lateral" (p. 153). O que Dalrymple considera como "movimento lateral" na filosofia de Nietzsche para mim permanece um mistério, pois ele nada diz a respeito.

A obra em que Nietzsche explica a interversão de sentidos, mencionada por Dalrymple, é A Genealogia da Moral. Nela, o autor, que antes de ser filósofo foi filólogo, explica que as palavras também têm história e que os significados atribuídos a elas mudam com o passar do tempo. Tendo buscado pelas origens e  evolução das palavras "forte" e "fraco", Nietzsche diz que na Antiguidade "forte" era atributo da "besta selvagem", o guerreiro conquistador, o bárbaro, aquele que conquistou territórios e tornou-se "nobre". "Fraco", ao contrário, era palavra associada aos vencidos. 

A inversão, segundo Nietzsche, teria acontecido com o nascimento do cristianismo institucionalizado, que teria disseminado a ideia de que o "forte" original na verdade seria "fraco", porque sem compaixão, sem a bondade cristã. "Fortes", na concepção da Igreja e de seus sacerdotes, seriam os sofredores, os  vencidos, pois  seriam os preferidos por Cristo, seriam aqueles que se solidarizam com a dor do outro. Estou sintetizando muito (que fique claro), mas basta para entender todo o texto de Dalrymple. 

Assim, para Nietzsche, no século XIX, "ressentimento" era o sentimento que o vencido (fraco) nutriria pelos conquistadores (fortes). Tal ideia aparentemente está de acordo com as preferências dos direitistas, que se dizem "conservadores". Para estes, os pobres e excluídos, que lutam por igualdade (que na verdade é igualdade de direitos e não de essências corporais, como maliciosamente costumam afirmar os direitistas) são liderados pelos intelectuais "esquerdistas ressentidos", vencidos pelos conservadores (os bárbaros originais). Ideia que Dalrymple adota e defende sem atribuir a Nietzsche o parentesco... Porém, tal ideia quando associada ao esquerdista Foucault – que entende que aqueles que perderam batalhas não necessariamente perderam a guerra e devem libertar-se e continuar lutando – é uma ideia ruim, inválida. É que Foulcault, que entendeu bem Nietzsche, sabia que "forte" e "fraco" refere-se a configuração de energias vitais (características de cada indivíduos e mutáveis ao longo do tempo) e não, apenas, ao apego a títulos de nobreza e posição social... De qualquer forma, curiosamente, para Dalrymple, o pau que bate em João não serve para bater em José! 

Embora seja difícil classificar Nietzsche como de esquerda ou de direita, Foucault é considerado como sendo de esquerda. O seu máximo pecado! No texto de Dalrymple implícita fica a ideia de que o intelectual de esquerda é um egoísta, sem compaixão, que deseja sobressair-se, ao mesmo tempo em que despreza os esforços dos bondosos e seus sacrifícios pessoais...

"Ah, os dilemas do esquerdismo! Onde estaríamos sem eles? Sobre o que teríamos que pensar?"(p. 29) Bem, se não fosse necessário pensar nos ISMOS que nos atingem, eu estaria pensando em ciência, em tecnologia, em artes, em literatura, em filosofia, em história, em antropologia, em biologia, ecologia... Não nos falta o que pensar, não é verdade? O esquerdismo, como entendido por Dalrymple e a turma do direitismo, já não é parâmetro para pensamento de esquerda e há muito tempo. Há uma vanguarda de esquerda que evoluiu, acreditem ou não (mas isso é tema para outra oportunidade). Já na direita eu procuro, procuro... E não encontro uma evolução real! Tudo parece acabar transitando para o preconceito (sem bom senso), para a limitação, a distorção e a ignorância. Apesar da minha sincera boa vontade em procurar. 

Qualquer Coisa Serve é uma coletânea de textos escritos para o New English Review entre 2005 e 2009. Eu não os chamaria de "ensaios"... São textos de 5, 6 páginas em média, num total de 34, sobre temas diversos. O efeito geral é cansativo e superficial. São impressões pessoais mal fundamentadas, embora formalmente bem escritas, e na maior parte das vezes sem qualquer indicação de fontes de pesquisa. Não é o melhor livro do autor. Há de se ter limites para outro ismo, o achismo.