Mark Fisher e o Sofrimento Psíquico, Ou aquele Que "Não Presta Para Nada"


Pensando a partir da Psicanálise, 
Mark Fisher fala sobre a própria saúde mental e a estrutura social que favorece a angústia e a depressão em contextos de lutas de classe. 

Demorei a ter notícia de que um dia houve um Mark Fisher e, mais do que qualquer outro, lamento tê-lo ignorado por tanto tempo. Eu e ele nascemos no mesmo ano (1968), ele poucos meses antes. Vivemos num mesmo tempo, em áreas urbanas distanciadas geograficamente, porém com problemas semelhantes, típicos da industrialização capitalista. Eu no Brasil, ele no Reino Unido, tivemos a adolescência profundamente marcada pelas lutas sociais por garantia de direitos trabalhistas, pela emergência do neoliberalismo, assim como pela indústria cultural da época. Vimos o nascimento e evolução do punk e do heavy metal, da pop music, da eletronic music, da gothic music, do pós-punk, o início da revolução promovida pelas tecnologias da informação... Líamos e nos inspirávamos na crítica musical da época, nos apaixonamos pelo Joy Division… Muita coisa em comum! Teríamos tido muito o que “conversar”, e eu sei bem a falta que me fez e faz alguém com tanto em comum como referência intelectual, produzindo textos nesses mesmos dias... Verdade que Slavoj Žižek segue uma linha parecida, escreve a partir de itens culturais contemporâneos, mas ele é de uma geração anterior, com outras vivências. É sobre "identificação geracional” a que me refiro, e àquela falta de interlocutores tão nietzschiana.

Ao que tudo indica, Fisher nunca se desligou da rock music e dos produtos da indústria cultural dos anos 70, 80 e adiante. Escreveu bastante sobre o que via e ouvia. Já eu fui ensinada a não acreditar que meus hobbies tinham alguma importância, ou que eu seria capaz de contribuir para que eles tivessem importância, e que escrever sobre eles seria uma tolice. E isso, para mim, teve seu preço. Reagimos de modo diferente à ideia interiorizada de “não prestar para nada”, claro! Mas, não evitamos seus efeitos.

Em 2023 eu seguia as aulas do Professor Gabriel Binkowski, do Departamento de Psicologia Clínica da USP, quando me deparei com a indicação de leitura de Realismo Capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?, de Mark Fisher. ── Tremenda ironia, pois o livro foi publicado no Brasil em 2020 e com organização do Professor Victor Marques da UFABC, que tomou parte na banca examinadora da minha pesquisa de Mestrado. Comentando meu trabalho sobre transumanismo, o professor Victor indicou, para futuras pesquisas, possíveis aproximações com o Aceleracionismo, movimento filosófico no qual Fisher tomou parte, mas sem mencionar o nome de Fisher e o livro prestes a ser publicado. 

Precisei sair dos círculos da Filosofia para conhecer Fisher na Psicologia. E por qual motivo Fisher é lido por psicólogos e psicanalistas? A resposta pode ser encontrada em seu texto Não Presta Para Nada, incluído como apêndice de Realismo Capitalista. Nele, Fisher se apresenta ao leitor como alguém que passou por problemas de saúde mental a partir da adolescência. Às voltas com crises de depressão, chegou a desenvolver sintomas como longos períodos de auto isolamento e automutilação. Em consequência tornou-se um visitante frequente de enfermarias psiquiátricas. Ele conta que como o tempo seu estado passou por melhoras e se estabilizou em função de transformações em suas condições de vida. Concluir seu doutorado e encontrar um trabalho como professor foi importante para ele, porém nunca o libertou completamente da angústia existencial causada pela crença de não ser bom o bastante para exercer os papéis a que se propunha. Fisher acabou entendendo que

"A escola dominante do pensamento em psiquiatria localiza a origem de tais ‘crenças’ no mau funcionamento da química cerebral, que deve ser corrigido por produtos farmacêuticos; a psicanálise, e demais formas de terapia por ela influenciada, são famosas por procurar as raízes da angústia mental no contexto familiar, enquanto a Terapia Cognitivo-Comportamental está menos interessada em localizar a fonte da crença negativa do que em simplesmente substituí-la por um conjunto de alternativas positivas. Não é que esses modelos sejam inteiramente falsos, é que eles deixam escapar ── e necessariamente têm que deixar escapar ── a causa mais provável de tais sentimentos de inferioridade: o poder social. A forma de poder social que mais teve poder sobre mim foi o poder de classe, embora, naturalmente, o gênero, a raça e outras formas de opressão funcionem produzindo o mesmo sentimento de inferioridade ontológica, melhor expressado justamente no pensamento que articulei acima: que você não é o tipo de pessoa capaz de desempenhar papéis destinados ao grupo dominante." (p. 139)

Sentimento de inferioridade ontológica! Ou seja, Fisher interiorizou a crença de que ele, essencialmente, por natureza,  era inferior, era incapaz. E ele não conseguia livrar-se dos efeitos dessa crença, que se manifestava nele na forma de angústia e depressão, com suas duras consequências. O modo como ele entendeu o mal que o acometia parte de uma combinação dos modos de pensar psicanalítico e marxista, também característicos dos teóricos críticos da Escola de Frankfurt. Assim, Fisher defendia a tese de que “muitas formas de depressão são melhor compreendidas ── e combatidas ── por meio de quadros analíticos impessoais e políticos, e não individuais e ‘psicológicos’” (p. 137). Em outras palavras, é preciso entender a sociedade na qual estamos inseridos para compreender os efeitos dela em nós.

Para além de supostos erros ou acertos teóricos, são inúmeros os relatos daqueles que se sentem inadequados em ambientes ou posições, inclusive casos recentes de acadêmicos bem-sucedidos no processo de titulações, porém portadores da “síndrome de impostor”, ou a angústia constante causada pelo sentimento de inadequação. O que Fisher diz é que no contexto de lutas de classes, os dominadores subjugam os dominados incutindo-lhes a crença na própria inferioridade. Tal crença é inconsciente e se transforma em veículo de autossabotagem, de autodestruição. Mencionando resultados de pesquisas obtidos pelo psicoterapeuta David Smail, Fisher conta que

"Em seu livro crucial, The Origens of Unhappiness [As Origens da Infelicidade], Smail descreve como as marcações de classe são projetadas para serem inabaláveis. Para aqueles que foram ensinados desde o nascimento a se verem como inferiores, a aquisição de qualificações ou renda raramente será suficiente para apagar ── em suas próprias mentes ou na mente dos outros ── o sentimento primordial de inutilidade que os marca tão cedo na vida." (p. 139)

Smail, citado por Fisher, explica que aquele que se afasta do estado que estaria destinado aos de sua classe torna-se sujeito a se ver dominado por sentimentos de “vertigem, pânico e horror”. Desgarrado de seu grupo original, ousando tentar ir além, acaba por se perceber isolado em meio a espaço hostil e sentido-se uma “fraude”, alguém que, na verdade, não teria direito ao espaço conquistado e o estaria ocupando indevidamente. Tal angústia se agrava diante da “responsabilização” disseminada pela classe dominante, a ideia de que cada um é o único responsável por seu sucesso ou fracasso, o que oculta a existência e influência de estruturas sociais viciadas. Estas seriam “apenas desculpas, invocadas pelos fracos” (p. 140). Para Fisher, a solução para o sofrimento psíquico seria a reconstrução da consciência de classe, tão abalada pela ação do neoliberalismo, e a invenção de novos modos de envolver-se politicamente.

Fisher tornou-se um pensador influente por meio de seu blog K-Punk, que serviu como suporte para  seus textos, posteriormente publicados em livros impressos... Em janeiro de 2017, Mark Fisher desistiu de seguir adiante, não sem antes ter escrito suas contribuições para as lutas em curso e futuras. Várias de suas perspectivas convergem com as minhas e o modo simples e direto como ele as escreve é uma inspiração para mim. Pretendo retornar aos textos de Fisher com frequência.



FISHER, Mark. Não Presta Para Nada. In: Realismo Capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? São Paulo: Autonomia Literária, 2020, pp. 137-141.